A Guerra é assim
Isto no outro dia foi o dia todo com a história do vírus.
Quantos infectados, em que zonas do país, quantos mortos, quem eram as pessoas, taxas de propagação, falar com este e aquele sobre o assunto, sobre os outros países, números estranhos, como os da Alemanha, as loucuras de países como o Reino Unido, a França ou a Bielorússia, a Itália cada vez pior, ler artigos, que procurei, que me enviaram, enfim, uma canseira.
O vírus tornou-se virótico por outra via. Já não posso ouvir falar dele! Mas claro que vou ter de ouvir. Já faz parte da vida, ele que mata. Infiltra-se por todo o lado, por todas as conversas, por todas as preocupações, por cada pensamento. Não podemos estar com quem queremos mas estamos sempre à espera que o vírus salte da esquina que viramos, a cada respiração do vizinho nas compras que fazemos, em qualquer superfície que, se calhar, tocámos sem querer. O vírus está muito mais presente do que os nossos entes queridos, os que amamos, os que queremos, os que ansiamos.
E isso não pode ser.
As pessoas todas que temos terão de ser maiores e mais importantes que o vírus, esse maldito Ser não-ser omnipresente agora nas nossas vidas. O pensar nas pessoas que amo tem de ser mais omnipresente do que o omnipresente vírus. O que amo tem de ser mais forte que o vírus, mais importante, muito maior. De forma a que o vírus seja cada vez mais pequeno, mais fraco, e que desapareça de vez, que não mate mais, que não estropie.
Acalmo-me um momento e paro um pouco. Dirijo então o meu pensamento para outro lado e não atendo mais o telefone, não leio mais artigos, não vejo televisão. Lembro-me de cada uma das pessoas que amo. Lembro-me que me esqueço de algumas e relembro-as, devagar, sem pressa. Como são, que cara têm, o que vestem? Oiço-lhes a voz, as palavras de ternura. Sinto-me mais acompanhado e sem medo. Já não sinto a presença do vírus. Finalmente. Sinto-me livre outra vez, embora sabendo-me enclausurado. Mas estou em casa. O vírus não. O vírus ficou lá fora, queremo-lo lá fora, longe, inexistente, inofensivo, reduzido a um ponto, uma singularidade, nada mais.
Pego no telefone outra vez. Apetecia-me telefonar a uma série de gente. A toda a gente de quem me lembrei, de quem gosto e amo. Dizer-lhes disparates, falar de ti, de mim, daquilo, de tudo menos do vírus. Manter essa distância. E matar o maldito vírus de todo e para sempre. E finalmente ganhar-lhe.
Mas sei que não é assim. Que ficará à espera, insidioso e velhaco, à esquina. Mas enquanto estou aqui, no meu castelo, no que é meu, no que é dos que amo, a defesa máxima está armada, porque me lembro sempre dele lá fora lembrando-me dos meus cá dentro. Armar-me-ei ainda de boa disposição, de humor, de poesia, de trabalho e de emoções. E por isso há-de morrer, sozinho e pequeno, desaparecido. A guerra é assim.