A China, os chineses, os vírus e as culpas dos outros
“A culpa do vírus chinês é dos chineses”. “A China devia pagar uma indemnização ao mundo pelo vírus que o assola agora”. Este e outros disparates têm sido ditos e veiculados por pessoas em redes sociais e conversas privadas.
Reflectem portanto uma opinião de uma parte que, espero seja pequena, da população. Para tal, contribuem alguns discursos de políticos ou de intelectuais que comparam esta situação a situações de guerras declaradas entre humanos. Alimentam ódios e racismos, culturais, geográficos e políticos, invertendo a direcção do que deveríamos todos sentir e fazer neste tempo de vírus: Solidariedade e ajuda entre todos enquanto Humanidade.
Quando estudei Medicina Chinesa tive de estudar um bocadinho da História da China. Nela, como em qualquer História nacional, encontrei o melhor e o pior de um povo, ou melhor, de povos daquela imensa região. Nunca fui admirador das políticas praticadas naquele país, desde a sua unificação. Talvez por ser um território imenso e com tantos povos diferentes, a China sempre foi totalitária e dirigida com mão de ferro, e deu azo a umas quantas das maiores barbáries e catástrofes da Humanidade. A unificação na dinastia Qin, o Confucionismo, as invasões militares, o Maoismo, o regime comunista-capitalista, nenhuma destas políticas me atrai nem tem o meu acordo ou admiração. Nenhuma delas conseguiu pôr fim a conflitos, injustiças, fomes, pragas, epidemias, matanças, crueldade, perseguições, ausência de escrúpulos. Para o seu próprio povo e para com os demais. Hoje, como outrora, a China é um país dirigido com mão de ferro e com todos os problemas que enumerei acima.
Por outro lado temos de reconhecer que a cultura chinesa nos apresentou e deu uma panóplia de inovações que hoje fazem parte do nosso dia a dia e que influenciou e influencia o mundo. A cultura chinesa foi e é das mais avançadas e sofisticadas no planeta. A par com todas as misérias e dependendo do período histórico, a civilização chinesa sempre foi capaz de surpreender pela inovação, inteligência e capacidade.
De entre estes elementos culturais, o único que me interessou de facto foi a Medicina Chinesa. Considero-a fascinante porque sobreviveu ao longo dos tempos quase inalterada nos seus conceitos e aplicações, tendo-se sempre revelado eficaz, dentro dos seus limites. De uma visão mais ou menos simplista do corpo humano, se a virmos do ponto de vista da medicina de hoje, e por vezes assente, nalguns aspectos, em critérios mais filosóficos que fisiológicos, a verdadeira Medicina Chinesa contemporânea é observada sob os critérios científicos actuais, afirmando-se como uma disciplina plena, racional, explicável e científica. Simples na sua imagem mas complexa na sua análise, a Medicina Chinesa fascina-me. É chinesa mas podia ser indiana, egípcia, grega ou babilónia. Tanto se me daria. O que me fascina é a medicina em si e não ter vindo destes ou daqueles.
A China é o que é e o vírus veio de lá. Mas podia ter vindo de outro sítio qualquer. Os mercados de HuWan não são melhores do que os bairros miseráveis dos Estados Unidos, da promiscuidade dos aeroportos como os de Frankfurt, da prostituição em Ibiza ou dos centros comerciais do Canadá. A zoonose – passagem de doenças infecciosas de animais para humanos – pode dar-se na China como no gado vacum do Brasil, nas galinhas de Portugal, nos porcos em França ou nos perus dos Estados Unidos. O problema não é a China somos nós todos.
Evidentemente a china tem problemas que deveria resolver para bem de todos. Dos humanos e dos animais. Aqueles mercados como os de HuWan simbolizam toda a barbárie e crueldade de que os humanos são capazes para com os animais. Mas é em todo o planeta que os humanos pressionam cada vez mais o resto do reino animal e os chineses não são mais culpados que os restantes.
Não é por isso que os desculpo. Pelo contrário. Depois das epidemias com gripe das aves, sars, suína ou mers, a China já devia ter aplicado medidas para ter acabado de vez com essas condições sanitárias mais perigosas.
Mas não é razão para ostracizar tudo o que seja chinês e ceder a diabolizações primárias que só interessam a quem quer governar o ódio. Odiemos antes o ser humano nas suas políticas cegas e tendenciosas, a sua ganância, a sua corrida para o abismo, o seu desrespeito para com a Natureza. E todas estas coisas, as encontro em qualquer povo e em qualquer nação.
De qualquer forma não interessa de onde veio o vírus ou como apareceu (Até há teorias da conspiração que afirmam que foram os Estados Unidos que levaram o vírus para a China para poder culpabilizá-la, outros defendem que o vírus foi fabricado num laboratório em HuWan e que houve um acidente, outros que é o planeta a vingar-se ou Deus a castigar-nos. Ainda não li nenhuma teoria sobre extraterrestres mas tenho a certeza que, se procurar…). Interessa que está aqui e que temos agora que viver ou morrer com ele.
Em vez de entrarmos em pensamentos e discursos de ódio e culpabilização, espero que aproveitemos toda esta crise para aprender, pensar, decidir, mudar de rumo, salvar o que resta e se ainda houver tempo, manter o planeta com condições de vida, manter a existência da espécie.
E, isso sim, exigir, à China e ao resto do mundo, que se estude, decida e aplique o acabar destas condições sanitárias em todo o planeta, devolvendo os animais selvagens aos sítios que lhes pertence e dando condições condignas aos animais de consumo.
Senão, o resultado está à vista. Não será o vírus, chinês ou não, a acabar connosco mas nós próprios.