Os espargos lambidos

Saía da cidade de Montemor-o-Novo para ver o campo. As herdades e montes à volta, campos verdes, montados de sobro e azinho, olivais, vacas e ovelhas. 

Passei por uma carrinha que tinha exposta cá fora batatas, cebolas e outras coisas. E uma mesinha com uns quantos molhos de espargos selvagens à venda. 

Gosto muito de espargos selvagens e não se conseguem em Lisboa. E ainda bem, ou deixariam de ser selvagens ou de servir quem mora perto deles. Quando os como fazem-me absolutamente lembrar o campo, o vento e a liberdade. 

Parei, claro, e vi o homem sair da carrinha, onde se abrigava do frio cortante de Dezembro. Iniciámos o negócio, acordámos o preço e começou a preparação. O homem usava uma máscara azul, tipo-cirúrgica, que tinha posto quando saiu da carrinha. Pegou num saquito de plástico transparente, desses fininhos. Depois, sem mais, tirou a máscara para baixo dos queixos, lambeu abundantemente os seus dedos grossos da mão direita e abriu o saco com eles. Ajustou novamente a máscara à cara, pegou no molho de espargos, meteu-os no saco cuspido e estendeu-me o braço. 

Não sabia se havia de me desmanchar a rir, se recusar o saco e o molho, se pedir outro, se ficar zangado, se explicar-lhe alguma coisa sobre contágios virais, se quê. No meio de tudo aquilo não disse nada, a não ser um obrigado, saúdinha e ala que se faz tarde. Já no carro ri-me a bandeiras despregadas. 

De volta a casa, pus o saco de plástico na reciclagem, lavei-os, despejei bastante água a ferver sobre os espargos selvagens e deixei-os uns minutos de molho, para lhes tirar o amargo e matar vírus, bactérias e mais o que houvesse. A seguir cortei-os e salteei-os longamente até ficarem tostados e cozinhados. Acompanhei-os com uns ovos coagulados (que são diferentes de ovos mexidos), pão e vinho. 

Vieram-me à memória todos os campos verdes por onde passei, os aromas selvagens das folhagens e da terra, o restolho das folhas de cada árvore ao vento, o calor a compensar o frio húmido do chão de ervas. E regalei-me.

Mas a imagem dos dedos grossos do homem a serem generosamente lambidos, por cima daquela máscara, suja e inútil, a baba a abrir o saco de plástico, os dedos a pegarem no molho dos soberbos espargos, eu a rir desbragadamente no caminho…

Não me saía da cabeça. Há coisas que não se esquecem, pelo insólito que têm.